Original                   Recibido: 17/05/2023      Aceptado: 15/08/2023

Lev Pavilovch Matveev: a contribuição da carga de treino para a periodização esportiva

Lev Pavilovch Matveev: the contribution of the training load to the sports periodization

Nelson Kautzner Marques Junior. Mestre em Ciência da Motricidade Humana pela UCB. RJ. Brasil. [kautzner123456789junior@gmail.com]

Resumo

O objetivo da revisão foi de explicar como Matveev elaborou o conteúdo da carga de treino para a periodização esportiva. O capítulo 1 apresenta a vida acadêmica de Matveev e informa alguns conteúdos que ele criou para a sua periodização. O capítulo 2 informa como Matveev embasou cientificamente a carga de treino da sua periodização. Em conclusão, o entendimento científico sobre a carga de treino é fundamental para prescrever o treinamento.     

Palavras Chave: periodização; esporte; treino; carga de treino.

Abstract

The objective of the review was to explain how Matveev developed the training load content for the sports periodization. Chapter 1 presents Matveev's academic life and informs some content that he created for his periodization. Chapter 2 informs how Matveev scientifically based the training load of the his periodization. In conclusion, the scientific understanding of the training load is fundamental to prescribe training.

Keywords: periodization; sport; training; training load.

Introdução

O russo Lev Pavilovch Matveev nasceu em Moscou, em 22 de agosto de 1924, no tempo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) (Bokan, 2010). Ele era filho de um integrante do exército vermelho, Pavel Denisovich Matveev, seu pai foi preso em 1937 e desapareceu em 1939 por causa repressão stalinista (Vinogradov, 2021). A sua mãe era Anna Sergeevna Matveev, morreu em 1943, o motivo não foi informado, talvez faleceu por causa da 2ª Guerra Mundial (2ª GM). Matveev foi incentivado pela família em praticar esportes, sendo atleta na juventude de ginástica, ciclismo e de tiro (Museu Histórico e do Esporte, 2021; Vinogradov, 2021).

A 2ª GM iniciou em 1939, em 1942 quando tinha apenas 18 anos, Lev Matveev  trabalhou na artilharia do exército vermelho, sendo chefe do treino físico da brigada de artilharia de Dnepropetrovsk (Museu Histórico e do Esporte, 2021). No período de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944, ocorreu o cerco de 900 dias dos nazistas e dos seus aliados à cidade de Leningrado (atualmente é a cidade de São Petersburgo) que pertencia a Rússia Soviética (Pitillo, 2015). Matveev lutou na Batalha de Leningrado e veio ser ferido por duas vezes, recebendo condecorações militares e as medalhas por bravura (Museu Histórico e do Esporte, 2021; Bokan, 2010).

Após a Revolução Russa de 1917 que a periodização esportiva começou a ser aperfeiçoada porque diversos russos realizaram sucessivas pesquisas que possibilitaram a criação de diversas concepções de periodização (Marques Junior, 2020; Oliveira, 2008). Isso se intensificou na URSS após a 2ª GM, vindo migrar para outros países da “cortina de ferro”, onde culminou com a elaboração de outros tipos de periodização (Bompa, 2002). O conteúdo da periodização passou a ser linha de pesquisa nas universidades soviéticas por causa da sua importância para o esporte de alto rendimento (Marques Junior, 2022). Segundo Verkhoshanski (1996), até os anos 40 a carga de treino do microciclo da periodização esportiva era prescrito de maneira empírica. Para solucionar esse problema, a escola socialista do treinamento esportivo que era liderada pela URSS começou a estudar nos anos 40 e 50 a carga de treino dos microciclos com o intuito dos treinadores estruturarem melhor esse componente da periodização (Gomes, 1995). Isso aconteceu principalmente nos anos 50, foram conduzidos vários experimentos com o objetivo de descobrir uma melhor maneira de organizar e controlar a carga de treino dos microciclos da periodização (Verkhoshanski, 1996). Talvez esses acontecimentos tenham influenciado Matveev em estruturar a carga de treino da sua periodização tradicional.

A maioria dos conteúdos da periodização tradicional de Matveev foram estruturados nos anos 50, quando esse cientista estava cursando o mestrado, nessa época a fisiologia do exercício, a bioquímica e a biomecânica estavam em formação e proporcionavam pouco embasamento científico para um pesquisador criar uma periodização (Verkhoshanski, 2001; Vinogradov, 2021). Apesar desses problemas, nos anos 50, os conteúdos da fisiologia do exercício da síndrome de adaptação geral (SAG) e da supercompensação foram utilizados por Matveev para embasar cientificamente a carga de treino da sua periodização (Stone et al., 2001; Krüger, 2016). Esse conteúdo e outros que Lev Pavilovch Matveev elaborou, formaram as bases da ciência do treino esportivo moderno (Barbanti, 1997). Por esse motivo Matveev foi considerado o pai da periodização esportiva moderna e pai do treinamento esportivo por causa das diversas contribuições para o esporte de alto rendimento. Em 21 de julho de 2006, no verão moscovita, Matveev faleceu com 82 anos trabalhando no período da tarde em seu apartamento (Palomares, 2006).

O objetivo da revisão foi de explicar como Matveev elaborou o conteúdo da carga de treino para a periodização esportiva.

Desarrolho

Vida acadêmica de Matveev

Em 1946, Lev Pavilovch Matveev começou estudar educação física no Instituto de Cultura Física da Rússia com 22 anos, vindo concluir a graduação em 1950 quando estava com 26 anos (Bokan, 2010; Tamarit, 2013; Vinogradov, 2021). Em 1950, Lev Matveev começou estudar no mestrado da Pós-Graduação dos Estudos do Departamento de Teoria e Metodologia da Educação Física, onde defendeu a sua dissertação de mestrado em 1955 aos 31 anos (estudou por 6 anos), que tinha o título de O Treino Físico Completo como Condição para a Especialização Esportiva, sob a orientação do Professor Doutor Alexander Novikov (Bokan, 2010; Vinogradov, 2021).

Talvez esse mestrado tenha ajudado Matveev a construir os conteúdos da sua periodização porque Verkhoshanski (2001) informou que no ano de 1952, Matveev aplicou a sua periodização tradicional nos atletas soviéticos para preparar os esportistas para os Jogos Olímpicos de Helsinque, na Finlândia. Nos Jogos Olímpicos de 1956 e de 1960 a periodização de Matveev também foi aplicada nos atletas soviéticos. Outra informação importante, Matveev consultou o conteúdo de treino dos pesquisadores soviéticos e do finlandês Pihkala dos anos 30 para criar a sua periodização (Krüger, 2016). Caso o leitor queira ver esse cientista consulte o linque (https://www.youtube.com/watch?v=rMhfCrBHnJY&fbclid=IwAR3ePfXZ-EIu3FM6YNF5rbrh0mybAj1CgP6NvYm39ypODyCjuEKRYJjXyK8).

No ano de 1964 o cientista Lev Pavilovch Matveev (ele estava com 40 anos) defendeu a sua tese de doutorado em Moscou com os resultados dos atletas da natação, do atletismo e do halterofilismo da URSS dos anos 50 e 60 com a sua periodização tradicional (Bokan, 2010; Matveev, 1977). O título da sua tese foi o seguinte: Problema da Periodização do Treinamento Esportivo. Por esse motivo a natação, o atletismo e o halterofilismo foram as modalidades responsáveis em estruturar a sua periodização. Uma curiosidade, essas três modalidades que Matveev criou a sua periodização eram esportes bases da URSS, ou seja, preparavam os atletas soviéticos para outros esportes ou eles se tornavam esportistas dessas modalidades (Marques Junior, 2022). Em 1965 a tese de Matveev foi publicada como livro em Moscou e posteriormente foi traduzida para outros idiomas, proporcionando no conhecimento da periodização no mundo. A publicação da tese de Matveev como livro na Espanha aconteceu no ano de 1977, tendo o título de Periodização do Treinamento Esportivo (Matveev, 1977).

Outra contribuição que Matveev proporcionou para a periodização foi o estabelecimento da terminologia macrociclo que constitui todo o conteúdo da periodização (Krüger, 2016). Em 1962, esse pesquisador do treinamento esportivo criou a nomenclatura microciclo para determinar o ciclo de treino que compreende dois ou mais dias de sessões (Vargas e La Vielle, 1997). Nos anos 60, Matveev elaborou as características dos ciclos de treino de algumas semanas (Arrese, 2012), vindo a chamar essa estrutura da periodização de mesociclo depois de 1971 (Krüger, 2016).

Contribuição de Matveev para a carga de treino

Matveev fundamentou cientificamente a carga de treino da sua periodização utilizando duas teorias, a SAG e a supercompensação.

O médico austríaco Hans Selye (nasceu em 1907 e morreu em 1982) foi influenciado pelos estudos sobre o estresse nos seres vivos do fisiologista estadunidense Walter Cannon que foram conduzidos nos anos 20 (Neylan, 1998) e em 1936, ele escreveu o seu primeiro artigo sobre o estresse (Selye, 1936), vindo denominar anos mais tarde de SAG. Matveev teve contato com os estudos da SAG nos anos 50 e ele utilizou esse conteúdo para explicar a ondulação das cargas da sua periodização e o efeito agudo e crônico desse estímulo no atleta (Stone et al., 2001).

Como a SAG se manifesta no atleta ao ser aplicada uma carga de treino?

Homeostase é o equilíbrio estável do organismo do atleta com o meio ambiente, podendo ser alterado por causa de qualquer estresse (carga de treino, calor, frio, emoção etc). Esse termo homeostase foi proposto nos anos 20 por Walter Cannon (Billman, 2020). Quando o atleta efetua uma determinada carga de treino ocorre quebra da homeostase porque o estímulo causou um estresse no organismo do esportista que ocasiona um certo desconforto. Esse acontecimento é denominado de fase de alarme, sendo a primeira fase da SAG. Em seguida, conforme o atleta vai se exercitando na sessão ocorre a fase de resistência onde o organismo se adapta ao estresse sofrido pela carga de treino e por último, o indivíduo se fadiga vindo finalizar a sessão, sendo a fase de exaustão da SAG. A figura 1 apresenta o desenho esquemático que representa a SAG.

 

 

 

 


Figura 1. Funcionamento da SAG (Adaptado de Marques Junior, 2020).

Os experimentos de Selye sobre a SAG evidenciaram que o aumento do estresse proporcionava uma maior liberação do cortisol (Selye, 1936). Esse cientista detectou na fase de alarme uma secreção do cortisol, na fase de resistência o cortisol mobiliza a degradação de aminoácidos para reparar o tecido lesado com o intuito do indivíduo continuar a praticar a tarefa (é a adaptação ao estresse) e na fase de exaustão o nível de cortisol pode estar elevado para cessar a lesão no tecido, mas costuma ser inferior ao do esforço físico. O cortisol é um hormônio glicocorticóide que é secretado pelo córtex suprarrenal que se localiza acima do rim. Esse hormônio é sensível ao estresse do treinamento, conforme aumenta a carga da sessão são liberados maiores níveis de cortisol. Portanto, o cortisol explica muito bem a relação entre carga de treino e o estresse do atleta desempenhado na sessão.

Esse acontecimento da SAG foi evidenciado em halterofilistas de elite (n = 8, 18,4±0,4 anos) (Fry et al., 2000). Os atletas realizaram um mesociclo de 4 semanas, ocorrendo um microciclo em cada semana. Na primeira semana foi realizado um microciclo com alto volume e nos outros microciclos o volume foi médio. A coleta do cortisol ocorreu no início e no fim do primeiro microciclo e depois o intuito foi verificar o efeito acumulado das cargas de treino, onde o cortisol foi coletado no fim do último microciclo. Os valores do cortisol mostraram que o estresse da carga de treino foi aumentando ao longo do treinamento periodizado – ver figura 2.

 

 

 

Legenda: Microciclo da 1ª semana (1º s e último dia), microciclo da 4ª semana (último dia).

Figura 2. Elevação dos níveis de cortisol conforme o estresse da carga de treino dos halterofilistas de elite (Dados de Fry et al., 2000 e elaborado pelo autor).

Como a teoria da SAG fundamentou cientificamente a carga de treino da periodização de Matveev?

A SAG se manifesta imediatamente durante a execução do treinamento, ela é uma resposta aguda e crônica do indivíduo referente o tipo de carga de treino que é aplicada na sessão. Portanto, sempre vai ocorrer a fase de alarme, a de resistência e a de exaustão em uma sessão. Porém, conforme o valor da carga de treino, o tempo que o atleta está fazendo o treinamento, o nível de preparação física do esportista e a etapa da periodização, a SAG vai responder diferente no indivíduo.

Matveev (1997) informou que a prescrição da carga de treino pode ser retilínea, escalonada, mas a carga que costuma predominar na sua periodização é a ondulada porque na estruturação dessa concepção apresenta ondas pequenas (são os microciclos), ondas médias (são os mesociclos) e ondas grandes (são os períodos).

Essa onda pequena é apresentada em um exemplo. Uma equipe de voleibol realizou por duas semanas o microciclo choque com exercícios de musculação de força rápida de resistência e de força reativa (é mais conhecido por pliometria). Na terceira semana o time realizou dois jogos, um na 4ª feira e outro no domingo, ocorrendo o microciclo recuperativo. Na quarta semana os voleibolistas retornaram a fazer o microciclo choque com os mesmos exercícios das duas primeiras semanas. Esse exemplo ilustra as ideias de Matveev (1997), ocorre uma ondulação da carga para os esportistas suportarem o estresse do treino, sendo ilustrado na figura 3.

 

 

 

Legenda: Ch – choque, 1ª s – 1ª semana e R – recuperativo.

Figura 3. Ondulação da carga de treino com a concepção de Matveev (Exemplo fictício elaborado pelo autor).

Nesse exemplo da figura 2 a SAG vai se comportar diferente nas 4 semanas porque conforme o atleta se adapta ao estresse da carga de treino as três fases da SAG vão se manifestar diferentes por causa dos mecanismos psicofisiológicas realizados pelo atleta. Essa adaptação da SAG ao estresse da carga de treino foi proposto em 1959 pelo russo Prokop (Viru e Viru, 2003).

As duas primeiras semanas do exemplo da equipe de voleibol os jogadores realizaram um microciclo choque e as fases da SAG (alarme, resistência e exaustão) foram com alta resposta por causa do alto estresse do treino. A terceira semana a equipe de voleibol realizou um microciclo recuperativo, tendo alto estresse nos jogos e baixo estímulo no treinamento, então a SAG se comportou com média resposta. A quarta semana a SAG foi alta porque foi realizado um microciclo choque, mas com valores da SAG menores do que as duas primeiras semanas porque o indivíduo ficou adaptado ao estresse da carga, onde os exercícios e a carga são similares ao da 1ª e 2ª semana.

Os valores em percentual da carga para os voleibolistas são a carga externa e a SAG corresponde a carga interna. A carga externa são os conteúdos prescritos no treino que são fáceis de ser mensurados e a carga interna são as reações psicofisiológicas do organismo do atleta que responde ao estresse causado pela carga externa. Então, aplicando as informações da carga interna e da carga externa no exemplo da equipe de voleibol a resposta dos jogadores ficou a seguinte em cada semana – os dados da figura 4 são fictícios. Veja como se comporta a ondulação da carga pela concepção de Matveev.

 

Figura 4. Comportamento da carga em 4 semanas em uma equipe de voleibol (Exemplo fictício elaborado pelo autor).

As adaptações da equipe de voleibol ao estresse da carga de treino do microciclo choque das 3 semanas com treino similar desencadeou respostas diferentes da SAG, essas informações foram expostas na figura 5 – exemplo fictício. Para entender o desenho esquemático da SAG nos três microciclos choques, na fase de alarme quanto mais baixo estiver a curva maior é o estresse da carga de treino na resposta psicofisiológica do indivíduo. Na fase de resistência ocorre o contrário, a curva mais pronunciada para cima corresponde um efeito mais “agressivo” da carga de treino nessa fase da SAG. Por último acontece a fase de exaustão com leitura da curva da SAG igual à primeira fase, quanto mais para baixo ela estiver maior é a fadiga no esportista.

 

 

 

 

 

Figura 5. Comportamento das fases da SAG de três microciclos choques de uma equipe de voleibol (Exemplo fictício elaborado pelo autor).

Portanto, a ondulação da carga de treino da periodização de Matveev (1997) baseada na SAG está relacionada com a resposta psicofisiológica do atleta ao sofrer o estresse do estímulo (é a carga). A SAG informa sobre a resposta aguda e crônica do esportista ao ser submetido uma carga de treino e é útil para nortear a ondulação das cargas. Entretanto, apesar da literatura do treino esportivo atribuir a Matveev o uso da SAG para fundamentar cientificamente a ondulação da carga de treino e o efeito agudo e crônico desse estímulo (Stone et al., 2001), parece que esse cientista nunca usou esse conteúdo na carga de treino da sua periodização. Matveev fez um questionamento sobre a SAG, segundo esse cientista não foi bem justificada por Prokop usar a SAG para explicar a ondulação das cargas de treino porque observar o desenvolvimento do estado de treinamento pela SAG sem estar presente o volume e a intensidade torna-se inadequado aplicar esse conteúdo para fundamentar cientificamente a carga da sua periodização (Matveev, 1977).

A supercompensação é o segundo conteúdo que Matveev (1997) fundamentou a carga de treino da sua periodização tradicional. O russo bioquímico Nikolai Yakovlev descobriu o fenômeno da supercompensação através dos seus experimentos que foram conduzidos de 1949 a 1959. Ele evidenciou em animais o aumento dos estoques muscular de glicogênio e de creatinafosfato após algumas sessões de treinamento onde na maioria dessas pesquisas o sujeito costumava realizar um adequado descanso (Viru e Viru, 2003). Para ocorrer a supercompensação é necessário alguns dias de treinamento acompanhado de uma boa recuperação após o esforço físico para proporcionar um aumento dos substratos energéticos (glicogênio, creatinafosfato etc). Posteriormente Yakovlev e outros pesquisadores soviéticos detectaram que o aumento das reservas energéticas no músculo após algumas sessões ocasionava uma melhora do desempenho esportivo. Matveev teve acesso a esse conteúdo da supercompensação nos anos 50, vindo utilizar essa teoria para fundamentar cientificamente o efeito crônico (de longo prazo) da carga de treino no atleta que está treinando com sua periodização (Marques Junior, 2020). A supercompensação explica cientificamente como o esportista pode atingir o pico da forma esportiva que pode ser detectado por avaliações cineantropométricas e pelo desempenho na prova do competidor (Matveev, 1977).

O treinador precisa estruturar um microciclo com adequada combinação de cargas de treino para o competidor atingir a supercompensação que é o pico da forma esportiva. Por exemplo, um atleta de salto triplo realizou um microciclo choque de 14 dias com o intuito de atingir o pico da forma esportiva. Nesse microciclo choque foi prescrito musculação de força rápida pela preparação de força especial e o treino de força reativa conforme os ensinamentos de Verkhoshanski (2001). A carga de treino desse exemplo fictício é exposta na figura 6.

 

 

 

 

Figura 6. Carga de treino do microciclo choque para um saltador de triplo atingir o pico (Dados fictícios elaborados pelo autor).

O leitor observou na figura 6 que para o esportista atingir a supercompensação (é o pico) é necessário ocorrer um acúmulo de cargas de treino por várias sessões com o intuito de gerar uma adaptação crônica (fisiológica, técnica e tática) no saltador de triplo para ele obter o máximo desempenho na disputa (é o pico).

A supercompensação só é atingida pelo atleta com uma minuciosa elaboração da carga de treino, no planejamento da quantidade de sessões e com uma adequada recuperação do competidor após o treino para gerar no aumento das reservas energéticas do indivíduo. O esportista realiza uma carga de treino na sessão que ocasiona degradação (o catabolismo) dos substratos energéticos que resulta na fadiga no fim do treinamento (Bompa, 2002). Em seguida, o atleta efetua um descanso com boa alimentação para proporcionar restauração das vias energéticas (é o anabolismo) que foram utilizadas no treino. Esse processo de recuperação da fadiga da sessão também pode ser chamado de compensação. Quando esse estímulo ocorre em várias sessões acompanhado de adequado descanso, o organismo do esportista aumenta os valores dos substratos energéticos e proporciona na supercompensação que resulta em uma melhor performance (Matveev, 1997).

O acontecimento fisiológico da supercompensação costuma ser evidenciado em diversas pesquisas em seres humanos). O estudo de Hingst et al. (2012) recrutou homens saudáveis de 26±3 anos. Os sujeitos realizaram extensão unilateral do joelho em uma cadeira extensora adaptada para a investigação por 2 horas e 30 minutos com cargas de 10 a 100%. Depois os sujeitos descansaram por 4 horas e no período de 2 horas foi inserido um cateter na veia femoral de ambas as coxas do sujeito para verificar a captação de glicose estimulada pela insulina. Próximo do término das 2 horas, foi realizada uma biópsia do músculo vasto lateral para detectar o nível de glicogênio muscular. Todos esses procedimentos foram efetuados novamente no 2º dia de treino, no 3º e 4º dia os sujeitos descansaram e no 5º dia de treino foi realizado o mesmo exercício e a mesma coleta de dados. Os resultados dos três dias de treino com dois dias de recuperação proporcionaram na supercompensação, sendo exposto na figura 7.

 

Figura 7. Nível de glicogênio muscular da coxa com a resposta fisiológica da supercompensação no 5º dia (Adaptado de Hingst et al., 2012).

Conforme o tipo de treino (força, velocidade, aeróbio, técnica etc) o treinador precisa estar preocupado com o heterocronismo da adaptação do estímulo de treino e com o heterocronismo da recuperação do treinamento para o esportista atingir uma adequada supercompensação que leva o atleta ao pico da forma esportiva. O heterocronismo da recuperação já era informado nos anos 30 (Vargas e La Vielle, 1997) e o heterocronismo da adaptação recuperação não foi encontrado na literatura. Heterocronismo significa a não simultaneidade.

O heterocronismo da adaptação o pesquisador Matveev já informava em 1965 preocupado com a supercompensação (Matveev, 1977). Por exemplo, o tempo de evolução da força rápida de resistência é de 4 a 5 meses de sessão e da condição aeróbia é de 15 dias a 2 meses de treino. Essas duas capacidades motoras condicionantes possuem significativa adaptação fisiológica no atleta em tempos diferentes (é o heterocronismo da adaptação) e o treinador precisa estar ciente sobre isso quando elaborar as cargas de treino e o tempo de sessão da periodização para o esportista atingir o pico dessas duas capacidades motoras (força rápida de resistência e condição aeróbia) na competição alvo da temporada. O heterocronismo da recuperação serve para o treinador ajustar com mais precisão as cargas dos microciclos para programar a adequada recuperação das capacidades motoras treinadas no atleta antes da competição ou para evitar um treino muito extenuante que leve o esportista ao sobretreinamento.

O heterocronismo da recuperação Matveev já chamava atenção em 1977 com o intuito de ocorrer uma boa organização da carga de treino para proporcionar o pico da forma esportiva (Matveev, 1991). Por exemplo, um treinador de futebol realizou um treino de jogo na 5ª feira e na 6ª feira e no sábado os jogadores não treinaram para acontecer total recuperação dos esforços dos treinamentos com o intuito de proporcionar supercompensação dos futebolistas no jogo de domingo. Baseado no heterocronismo da recuperação os futebolistas descansaram por 2 dias porque o treino de jogo é necessário 1 dia (24 horas) de pausa passiva, a força rápida de resistência requer 2 dias (48 horas) de descanso e a condição aeróbia e anaeróbia se recupera em um período de 1 a 2 dias (Barbanti, 1997). Portanto, o heterocronismo da adaptação e o heterocronismo da recuperação são importantes conteúdos para o treinador planejar a carga de treino dos microciclos e ajuda o responsável pela sessão estabelecer o momento que o atleta poderá atingir o pico da forma esportiva que é a supercompensação em condições ótimas.

A carga de treino utilizada na periodização tradicional de Matveev são diluídas, também podem ser chamadas de distribuídas ou regulares. As cargas regulares na periodização de Matveev são aplicadas de maneira uniforme porque diversas capacidades motoras costumam ter similar atenção nos períodos do treino ou de acordo com a necessidade do treinador (Oliveira, 2008). A estruturação de diferentes capacidades motoras em um microciclo ocasiona o treino concorrente, podendo ser negativo para a adaptação fisiológica do atleta. Por exemplo, o trabalho aeróbio na mesma sessão do treino de força em vários microciclos costuma interferir na melhora da força.

Conclusões

Matveev pesquisou por toda vida a periodização esportiva, vindo criar uma concepção de periodização nos anos 40 a 70 que é usada até nos dias atuais. Para esse pesquisador fundamentar cientificamente a carga de treino da sua periodização, ele usou a supercompensação para entender o mecanismo fisiológico do pico da forma esportiva. A SAG parece que Matveev nunca aplicou essa teoria na sua carga de treino, inclusive ele não mencionou esse conteúdo nos seus livros de treino esportivo (Matveev, 1977, 1991, 1997). Porém, para o treinador estruturar com qualidade a carga de treino é necessário o conhecimento do heterocronismo da adaptação e do heterocronismo da recuperação. Em conclusão, o entendimento científico sobre a carga de treino é fundamental para prescrever o treinamento.

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